O sujeito que não tem fé na humanidade é porque não conhece a batalha contra a varíola. O inimigo era maiúsculo. Talvez o mais assustador da nossa história. Corria o século XVIII, e algo invisível matava 400.000 europeus por ano. O assassino não fazia restrições. Em apenas um século, cinco reis foram ceifados, vítimas de diarreias selvagens e hemorragias letais. O adversário só deixava como rastro um cadáver cheio de úlceras.
O sujeito que não tem fé na humanidade é porque não conhece a batalha contra a varíola. O inimigo era maiúsculo. Talvez o mais assustador da nossa história. Corria o século XVIII, e algo invisível matava 400.000 europeus por ano. O assassino não fazia restrições. Em apenas um século, cinco reis foram ceifados, vítimas de diarreias selvagens e hemorragias letais. O adversário só deixava como rastro um cadáver cheio de úlceras.
Damaso, bióloga molecular da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ressalta que em nenhuma das antigas vacinas que ainda estão conservadas aparece a varíola bovina. Sua pesquisa sugere que Jenner teria utilizado a varíola de cavalos. O próprio médico em inglês, em um texto publicado em 1798, defendia que “a doença progride do cavalo ao mamilo da vaca, e da vaca para a pessoa”, destaca Damasio em um estudo publicado na revista especializada The Lancet Infectious Diseases.
Como quase qualquer avanço ao longo da história, a imunização enfrentou a oposição de alguns setores da Igreja. No século XVIII, um proeminente reverendo cristão de Londres, Edmund Massey, diante dos progressos que acabariam resultando na vacina de Jenner, atacou as medidas de saúde preventivas por julgar que elas se opunham aos desígnios de Deus. No entanto, seus argumentos acabaram no lixo da história e o sucesso da vacina no século XIX foi enorme.
(Ali Maow Maalin, último doente natural de varíola OMS
Em 1803, o médico espanhol Francisco Xavier Balmis recolheu 18 crianças dos orfanatos de Santiago de Compostelae outras quatro de instituições de Madri. A missão envolvendo os chamados galeguinhos consistia em embarcá-los em um navio na Corunha e serem inoculados com a suposta varíola bovina, um a um, para que a vacina chegasse viva, de braço a braço, até a América, onde a doença levada pelos espanhóis tinha aniquilado civilizações inteiras.
Diante da falta de injeções de varíola bovina, a vacina era transportada desta maneira rudimentar pelo mundo, assim como os humanos pré-históricos transportavam sua tocha no filme A Guerra do Fogo. Em 1864, por exemplo, o médico francês Gustave Lanoix viajou até Nápoles, onde o italiano Giuseppe Nigri aperfeiçoara um método para passar a vacina de linfa de bezerro a bezerro, sem precisar dos bracinhos de crianças. Impressionado, Lanoix regressou a Paris com uma vaca napolitana e montou o Instituto de Vacinação Animal.
(Médico de Barcelona extrai sangue de um cavalo COMB)
Ali, logo em 1866, o francês substituiu a cepa italiana por líquido de pústulas de um surto de varíola em vacas do vilarejo de Beaugency, no vale do Loire. A partir dessas amostras, começou a estandardização da vacina. A chamada linfa de Beaugency viajou pela Europa e se espalhou pela África e pela América. Chegou ao Brasil em 1887. “Fizemos o sequenciamento do genoma completo dessa cepa e vimos que ela está extremamente ligada ao vírus da varíola equina”, afirma Damaso.
Na realidade, todas as amostras de vacinas antigas que ainda estão conservadas contêm o vaccínia, um vírus de origem desconhecida que não é encontrado na natureza e que pertence à mesma família que as varíolas humana, bovina e equina. Damaso recorda que a versão dos cavalos também pode infectar as vacas, produzindo as mesmas pústulas, e vice-versa.
O virologista espanhol Antonio Alcamí, membro da Comissão Assessora da OMS em Pesquisas sobre o Vírus da Varíola, concorda com Damaso: “Acredito que, provavelmente, o vaccínia que faz parte das vacinas humanas é um horsepox [vírus da varíola equina] europeu isolado no século XIX”. É impossível comprovar sua hipótese. O vírus equino tampouco pode ser mais encontrado na natureza.
O médico José Tuells, da Universidade de Alicante, na Espanha, é um dos maiores especialistas do mundo na história da vacina da varíola. Não se surpreende com as conclusões de Damaso. Tuells recorda que o próprio Jenner, em 1798, descrevia sete casos nos quais utilizou pústulas de cavalo como fonte do pus para a vacina. “Quando não tinham cavalos, eles colhiam linfa de vaca ou de cabra ou do que fosse. Se a da cabra tivesse triunfado, agora não teríamos vacinação, mas sim cabronação”, brinca.